Uma ilustração mostra estudantes em uma universidade, com um jovem usando laptop em destaque. Ao fundo, surge o prédio universitário e, ao lado, a silhueta de um perfil com peças de quebra-cabeça coloridas, simbolizando o autismo e a inclusão no ensino superior.

A jornada da inclusão: novo Vestibular UFG tem pouco mais de 1% de inscritos que se declararam pessoas com autismo

Com 331 candidatos autistas — pouco mais de 1% dos inscritos — o novo vestibular da UFG expõe a crescente presença de pessoas com TEA no acesso ao ensino superior e evidencia a urgência de políticas de inclusão e apoio institucional.

O retorno do vestibular próprio da Universidade Federal de Goiás (UFG), após alguns anos de ausência, trouxe consigo um dado inédito e relevante sobre a inclusão e a crescente demanda por acessibilidade no Ensino Superior. Segundo o Instituto Verbena, que organiza o processo seletivo da UFG, com um total de 31.825 candidatos inscritos na edição 2025, 331 se autodeclararam autistas com cadastros homologados — um número que representa cerca de 1,04% do total de inscritos na concorrência. Todos os dados foram obtidos via Lei de Acesso à Informação, em um pedido que foi parcialmente atendido. Essa marca, agora oficialmente registrada pelo Edital nº 17/2025, lança luz sobre a presença do Transtorno do Espectro Autista (TEA) nos portões da universidade e reforça a urgência de políticas de apoio institucional desde as etapas de seleção.

Desse contingente de autistas, o Instituto Verbena também destacou que 188 autistas (o que equivale a aproximadamente 56,8% dos inscritos) buscaram ativamente o apoio institucional, solicitando uma das condições ou adaptações oferecidas pela instituição. Dentre as solicitações, 174 foram aceitas. O alto índice de pedidos de suporte demonstra que, apesar de estarem ingressando no Ensino Superior, esses estudantes já identificam a necessidade de recursos que garantam sua equidade na realização da prova. Entre os principais itens disponibilizados pela UFG, estavam o tempo adicional de uma hora e trinta minutos, a correção diferenciada e diversas condições especiais, como ledor de prova, prova ampliada e a possibilidade de realizar o exame em uma sala individual ou com número reduzido de participantes.

Além disso, vale destacar que, pela primeira vez, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) levantou o número de pessoas diagnosticadas com TEA no Censo: são mais de 2,4 milhões, representando cerca de 1,2% da população brasileira. A mesma pesquisa, inclusive, também constatou que Goiás possui mais de 75 mil pessoas com autismo (cerca de 1,1% dos residentes goianos). A capital Goiânia, na ocasião, registrou mais de 17 mil (aproximadamente 1,2% da população da cidade). Apesar de o levantamento, por si só, ser um passo importante em direção a uma realidade mais inclusiva, os números destacam uma desigualdade preocupante: embora a taxa de escolarização de pessoas com TEA na educação básica tenha crescido nos últimos anos, o número de autistas no ensino superior é mais de 20 vezes menor do que o registrado na população geral.

Primeiro passos de inclusão

Apesar do índice de escolarização de 36,9% entre pessoas autistas (cerca de 800 mil pessoas) apontado pelo Censo, menos de 30 mil estão no ensino superior. O doutorando em Comunicação pela Universidade Federal de Goiás, Tiago Abreu (29 anos), faz parte dessa pequena estatística. Tiago recebeu o diagnóstico de autismo em 2015, no mesmo período em que ingressou no curso de Jornalismo. Ele lembra que a estrutura de apoio era incipiente: “Inicialmente, procurei a coordenação do curso, que me orientou a buscar o Núcleo de Acessibilidade. Eles tinham pouca experiência com autismo, mas mostraram muita disposição.”

Abreu afirma que os primeiros semestres foram marcados por limitações, ainda que seu objetivo fosse apenas se antecipar a possíveis dificuldades. Observou também que a universidade carecia de uma política articulada para atender estudantes autistas, e que os serviços existentes funcionavam de forma isolada. Naquela época, a UFG registrava 11 discentes com autismo durante o primeiro semestre, segundo a plataforma Analisa UFG; agora, uma década depois, são 112 estudantes. Mesmo com o progresso, Tiago aponta que ainda existem desafios: “Quando pensamos em deficiência, geralmente imaginamos adaptações visuais, intérpretes, materiais acessíveis. Mas o autismo envolve questões de saúde mental, comunicação e interação social. Há especificidades que não aparecem em outras deficiências”, pondera.

Crescimento do número de estudantes com autismo na UFG, de 2015 a 2025

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Interpretação gráfica do portal de Dados Abertos da UFG. Foto: Produção dos autores.

Os dados do IBGE corroboram essa análise: dentre todos os universitários matriculados no país, apenas 0,8% são pessoas com TEA, o que evidencia os obstáculos para permanecer e progredir na formação acadêmica, especialmente diante de barreiras de acesso, falta de adaptações adequadas e apoio institucional insuficiente. Esse contexto se reflete na experiência de Abreu, que afirma ter sido o único, entre os estudantes autistas que conheceu durante sua graduação na UFG, a finalizar o curso dentro do prazo — sem considerar aqueles que abandonaram a formação.

Diagnóstico tardio

A jornalista Izabella Pavetits (30 anos), também formada pela UFG, enfrentou obstáculos diferentes. Diagnosticada somente após a conclusão do curso, viu suas particularidades frequentemente serem interpretadas como “implicância”. Dessa forma, seus pedidos de adaptação eram considerados exagerados, o que resultou na ausência de assistência efetiva.

A ausência de um laudo diagnóstico também afetou suas escolhas acadêmicas. Antes do Jornalismo, Izabella iniciou o curso de Direito, também na UFG, apenas para perceber que a rigidez cognitiva tornava o ambiente desafiador. No autismo, a rigidez cognitiva é comumente manifestada por meio de uma forte dificuldade em flexibilizar pensamentos, ideias e comportamentos, e para Izabella, isso se aplicou ao precisar entender que uma lei poderia passar por diferentes interpretações. “A ideia de que a aplicação da lei dependeria da opinião de alguém me pareceu totalmente injusta e ilógica”, comenta, ao recordar o momento em que um professor sugeriu que as normas eram mais maleáveis do que os livros didáticos indicavam.

Além disso, a jornalista relembra as dificuldades sociais enfrentadas: em atividades avaliativas que exigiam interação, não conseguia se inserir nos grupos. “Me sentia inadequada, deslocada. Acabava entrando nos grupos que sobravam”, relata.

A transferência para o curso de Jornalismo trouxe algum alívio, sobretudo por haver maior identificação com o conteúdo. Contudo, a dimensão social (estabelecer vínculos com colegas, construir redes e desenvolver proximidade com docentes) continuou sendo um desafio. “Eu não sabia criar essas conexões. Então, apesar de estar indo bem academicamente, eu me sentia invisível”, afirma.

Em um episódio marcante, ao pedir informações básicas e que considerava essenciais sobre uma viagem prevista para uma disciplina, ouviu de um professor que estava sendo “fresca”. “Na época, eu não tinha diagnóstico, então não tinha sequer fundamento para explicar minhas necessidades. Acabei desistindo da atividade e fiquei sem nota”, recorda.

Izabella recebeu o laudo apenas em 2022, aos 27 anos, passando a integrar estatisticamente o grupo de 2,4 milhões de pessoas diagnosticadas com autismo por profissionais de saúde no Censo de 2022 (sendo 1,4 milhão de homens e 1,0 milhão de mulheres).

Comparativo entre mulheres e homens com autismo no Brasil, em porcentagem

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Representação gráfica dos dados do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2022. Foto: Produção dos autores.

O impacto do acolhimento institucional

A trajetória de Vitor Rodrigues (28 anos) expõe outro ponto sensível: o diagnóstico equivocado. Inicialmente identificado como esquizofrênico, Vitor foi submetido a medicações fortes e que comprometiam sua rotina. A correção só aconteceu quando a mãe, com suspeitas do sofrimento do filho, buscou uma segunda avaliação e obteve a afirmação de autismo.

Mesmo com o laudo, Vitor conta que as recomendações de acessibilidade e o histórico clínico, elaborados por sua médica, não serviram de muito durante o ensino fundamental e o ensino médio. Em ambas, os diretores desconsideram os documentos e negaram quaisquer adaptações. A ausência de suporte agravou dificuldades acadêmicas e a convivência em ambientes turbulentos. “Eu tinha muita dificuldade de concentração e não conseguia alcançar meu potencial”, afirma.

A virada acontece somente no ensino superior, quando ingressa no Centro Universitário Alves Faria. Ali, a coordenação acolheu o diagnóstico, seguiu as recomendações e disponibilizou acompanhamento contínuo, o que transformou sua relação com os estudos. “Pedi apenas suporte para reduzir barulhos e organizar meus estudos, para que eu pudesse ter uma rotina normal como qualquer estudante. Também solicitei proteção contra brincadeiras de mau gosto e bullying, porque sofri muito com isso na escola. Eles compreenderam minha história e, ao longo dos quatro anos de curso, fizeram adaptações que realmente salvaram minha vida”, conclui.

A experiência de Vitor durante o ensino superior levanta uma pergunta inevitável, quase instintiva: como teriam sido as trajetórias de Tiago e Izabella se tivessem recebido o mesmo nível de suporte?

Os números e o cotidiano

A desigualdade vivida pelos três se reflete nas estatísticas do IBGE. Entre pessoas com 25 anos ou mais diagnosticadas com autismo:

  • 46,1% não possuem instrução ou têm apenas o ensino fundamental incompleto, contra 35,2% da população geral;
  • apenas 25,4% das pessoas autistas estão entre aqueles com ensino médio completo e superior incompleto, contra 32,3% da população geral;
  • A taxa de escolarização da população autista foi de 36,9%, o que é maior do que a taxa da população destacada, que equivale a 24,3%
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           Interpretação gráfica dos dados anteriores, baseados no Censo Demográfico do IBGE - 2022. Foto: Produção dos autores.

 

Para que essa realidade se transforme, o primeiro passo é incentivar a entrada de pessoas autistas no ensino superior. E, com o vestibular próprio e a via do Enem, consolidando múltiplos caminhos de acesso, a UFG demonstra estar à frente da média nacional de inclusão, com autistas representando cerca de 1,5% de seus discentes. O crescimento dessa presença é um fenômeno notável em todo o país: o último Censo da Educação Superior (INEP, 2024) registrou 9.718 estudantes com TEA matriculados. Esse número demonstra um crescimento impressionante, considerando que em 2013 as universidades brasileiras atendiam a somente 328 estudantes com o transtorno, refletindo um avanço significativo em uma década.

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Interpretação do Censo da Educação Superior (2024), realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Foto: Produção dos autores.

É importante contextualizar que o número de 1,5% dos discentes, utilizados para análises como a do programa “UFG Inclui”, são extraídos diretamente do SIGAA (Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas). Ou seja, ele depende da autodeclaração dos próprios discentes. Tal metodologia, embora seja o meio oficial de registro na universidade, pode levar a uma subnotificação nas taxas.

Tiago Abreu destaca que a ausência de procedimentos sistemáticos para identificar quantos estudantes autistas ingressam no ensino superior constitui uma das principais fragilidades, tanto na UFG quanto em outras instituições. “Se não sabemos quantos entraram, não sabemos quantos evadem. Sem números, fica parecendo que tudo funciona bem.” Ele explica que atualmente existem duas vias de ingresso para pessoas com deficiência: as cotas — quando o candidato declara a condição — e a ampla concorrência. Muitos estudantes autistas ingressam por ampla concorrência sem informar o diagnóstico, e a universidade só toma conhecimento da situação quando surgem dificuldades na interação com docentes, colegas ou na realização de atividades acadêmicas. “Há instituições que buscam localizar esses estudantes por meio de campanhas, como a Universidade Federal do Pará. Não vejo isso acontecer na UFG. E como o autismo envolve desafios de comunicação e interpretação social, muitas vezes o estudante nem consegue formular o tipo de apoio de que necessita. Por ser uma deficiência não visível, ele pode ser percebido como desinteressado, ríspido ou irresponsável, quando, na verdade, enfrenta obstáculos concretos”, afirma.

Ao ser questionado sobre um cenário ideal de acolhimento no ensino superior, Tiago defende que a primeira medida deve ser o aprimoramento dos processos de identificação já no momento da inscrição. Em seguida, considera fundamental implementar campanhas permanentes para alcançar estudantes que não informam o diagnóstico. Ele também ressalta que a saúde mental integra as condições de acessibilidade: “Os serviços de saúde mental da universidade estão sobrecarregados. É preciso investir, contratar profissionais e ampliar a estrutura. Além disso, há uma mudança cultural que precisa ocorrer dentro da instituição. Algumas iniciativas avançam por impulso institucional, mas muitas dependem da mobilização dos próprios estudantes”, conclui.

Durante a graduação, Tiago Abreu e Izabella Pavetits passaram a trabalhar juntos na produção do podcast Introvertendo, criado por Tiago e voltado a debates sobre autismo, sobretudo na vida adulta. O programa alcançou projeção nacional: recebeu o prêmio da Intercom em 2019, integrou a lista de destaques da Apple em 2020, foi agraciado com o Prêmio Orgulho Autista Brasil em 2024 e ganhou espaço em veículos como Estadão e TV Cultura. Izabella menciona que um de seus episódios preferidos é “Autistas bêbados”, por confrontar a imagem equivocada de que pessoas autistas seriam ingênuas ou “puras”. Para ela, o valor central do projeto está em evidenciar a humanidade e a diversidade do espectro: “O essencial é mostrar que somos pessoas, com diferenças, claro, mas pessoas comuns, vivendo experiências comuns.” Ela observa ainda que o podcast recebe retornos de ouvintes autistas que se sentem representados, de familiares que passaram a compreender melhor seus filhos e até de pessoas sem relação direta com o tema, mas que relatam ter ampliado sua percepção sobre o autismo.

A existência do Introvertendo constitui também uma forma de resistência diante das adversidades enfrentadas por pessoas autistas no ambiente acadêmico e, posteriormente, no mercado de trabalho. Nesse contexto, Izabella e Vitor Rodrigues Costa relataram obstáculos vivenciados mesmo após obterem o diagnóstico. Izabella teve solicitações de adaptação negadas; Vitor, por sua vez, enfrentou situações constrangedoras em razão de comentários e “brincadeiras” no ambiente profissional. Ele explica que precisou desenvolver estratégias para aprimorar a comunicação: “É uma questão de sobrevivência. Existe o mito de que a pessoa autista não interage, mas eu construí vínculos — poucos, mas construí. Faço terapia para desenvolver habilidades sociais e busco cursos técnicos, como marketing digital. O problema é que, mesmo com esse esforço, ainda esbarramos em preconceitos estruturais.”

Diante desse panorama, Abreu, Pavetits e Costa também compartilharam perspectivas e aspirações para os próximos anos. Tiago observa que há mais estudantes autistas na universidade do que se imagina e que o ambiente acadêmico tende a favorecer o aprofundamento em temas específicos — característica compatível com perfis presentes no espectro. Ele reforça que pessoas autistas já desempenharam papéis relevantes na produção científica e continuarão contribuindo. “É fundamental que a universidade reconheça isso e ofereça condições para que essa participação seja plena”, conclui.

Izabella, por sua vez, orienta outras pessoas autistas que desejam ingressar e permanecer na universidade a selecionarem cuidadosamente suas batalhas. Para ela, compreender os próprios limites e identificar o que é possível transformar são passos essenciais. “Não dá para tentar mudar o mundo sozinho e se machucar no processo. É importante querer ocupar espaços, mas sem se perder de si”, afirma.

Vitor avalia que, com a ampliação do acesso ao diagnóstico e a maior visibilidade de pessoas autistas, será possível avançar na inclusão no ensino superior. Para isso, considera indispensável o fortalecimento de políticas públicas e a disseminação de informações confiáveis. “A mudança não acontece da noite para o dia. Mas acredito que, conforme mais autistas adultos ocuparem espaços, mostrarem seus talentos e falarem em uníssono, haverá avanço. Eu mantenho essa esperança”, declara.

Vestibular UFG e o novo horizonte da inclusão no Ensino Superior

Na Universidade Federal de Goiás, o desafio vai além do ingresso ou permanência desses estudantes no ensino superior; é preciso desenvolver ferramentas e campanhas para identificação dessas pessoas, entender quais barreiras enfrentam e estruturar políticas de incentivo efetivas. 

As experiências de Tiago Abreu, Izabella Pavetits e Vitor Rodrigues Costa demonstram que, apesar dos progressos alcançados, a inclusão de pessoas autistas ainda enfrenta barreiras significativas. Seus relatos evidenciam tanto as dificuldades estruturais quanto a potência de seus esforços individuais e coletivos. Ao mesmo tempo, projetam um horizonte possível, no qual trajetórias acadêmicas e profissionais podem ser construídas com dignidade. A transformação é gradual, mas, como mostram suas vozes, já está em curso.

A crescente presença de pessoas com TEA, evidenciada pelos 331 candidatos do último vestibular e os altos pedidos de recursos, impõe uma realidade incontornável: o desafio da UFG é consolidar o avanço da inclusão, transformando a demanda por acessibilidade em um compromisso institucional contínuo, do acesso à diplomação.

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