A foto mostra uma pessoa escrevendo em um pequeno pedaço de papel apoiado sobre um caderno espiralado. O caderno tem uma capa colorida com listras verdes, amarelas e azuis, além de estrelas brancas — remetendo à bandeira do estado de Goiás. A pessoa segura uma caneta azul com listras brancas e usa um anel prateado na mão esquerda. No papel, é possível ler parte de um lembrete escrito à mão: “dia 23 …”.

236 de 18 mil alunos retornam ao ensino médio regular, após transferências para a EJA

18 mil alunos do ensino médio público de Goiás são transferidos para a EJA, mas somente 1,31% regressa após decisão judicial

Por Geovanna Porto, Giovanna Gonçalves, Giulia Serikaku e Maria Luiza Inocêncio

Em 2023, a juíza Maria Socorro Afonso da Silva determinou que o Estado de Goiás teria 20 dias para restituir ao ensino noturno regular os estudantes que foram compulsoriamente transferidos para turmas da Educação de Jovens e Adultos (EJA) após o fechamento das turmas de ensino médio noturno.

Tem-se que cerca de 18 mil alunos foram remanejados para o ensino EJA, segundo dados divulgados pelo jornal O Popular em 2023. O cumprimento do fluxo regular desses alunos foi interrompido e desregulado sob diversos pretextos. 

Instigada pela escassez de informações que cercam o caso, a reportagem buscou –  por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) – algumas respostas.

No dia 15 de Outubro de 2025, foi cadastrada uma manifestação formal no Sistema de Ouvidoria de Goiás com algumas perguntas sobre a decisão da juíza e a situação que a precedia. O pedido, direcionado à Secretaria de Educação (Seduc), foi respondido após 13 dias de espera.

A juvenilização aumenta 

Através desse trâmite específico foi possível confirmar que, após o fechamento de diversas turmas de ensino médio do período noturno, entre 2022 e 2023, os alunos foram transferidos para a EJA, mesmo estando na faixa etária entre 16 e 17 anos – o que diverge da norma que determina que, para que os estudantes possam fazer parte da modalidade correspondente ao ensino médio da Educação para Jovens e Adultos, devem ser maiores de 18 anos.

Lilian de Jesus, professora da rede estadual e ex-colaboradora da EJA, trabalhou na área por oito anos e, quando questionada sobre a mudança de perfis de alunos da EJA, disse que no início de sua carreira como educadora na modalidade via mais pessoas adultas e exemplificou que chegou a dar aula para pessoas com mais de 40, 45 e até 60 anos. No entanto, afirma que nos seus últimos anos como docente na EJA, em meados de 2022 e 2023, o perfil do aluno mudou para pessoas mais jovens. Essa mudança mencionada pela professora é chamada de "juvenilização”, termo já utilizado para entender o rejuvenescimento do público da EJA. 

Durante a entrevista, Lilian discorreu sobre como essa mudança impactou pedagogicamente,  tanto a rotina dos professores quanto a rotina dos alunos. A professora argumenta que os alunos que migram do ensino regular para a modalidade EJA sofrem prejuízos causados pela transição pedagógica, visto que, na EJA as aulas diminuem, o tempo dessas aulas é menor e o tempo de estudo também.

Para entender melhor a situação na perspectiva dos alunos, a reportagem conversou com o jovem Gabriel Mota, de 18 anos, que concluiu o ensino médio no primeiro semestre de 2025 por meio da EJA. Na época em que Gabriel integrou à modalidade, ele ainda era menor de idade e a justificativa foi a entrada dele no mercado de trabalho. Ele menciona a diferença que sentiu ao mudar o formato educacional, percebendo uma precarização. “[...] O conteúdo passado nas aulas é totalmente inferior ao do ensino regular”. comentou. “Eram pouquíssimos os dias que tínhamos aula até as 22:00”.

Quantos ficam e quantos vão? A dúvida permanece

Ainda no mesmo documento da LAI, a Seduc afirma que a decisão da juíza foi atendida e os alunos foram individualmente ouvidos, havendo a opção de retornar para o ensino médio  ou ficar na EJA. Foi informado que 236 estudantes optaram pelo retorno imediato para o ensino regular, após a escuta – dentre esses, nem todos voltaram para a mesma unidade escolar que estudavam inicialmente.

A imagem mostra 100 ícones de pessoas. Apenas 3 estão em azul, representando os alunos que voltaram para o ensino médio regular. Os outros 97 estão em vermelho, mostrando os que permaneceram na EJA. A legenda explica as cores e há o título “Porcentagem de alunos que voltaram para o ensino médio regular”.
Fonte: Secretaria de Estado da Educação (Seduc)

 

No entanto, quando se refere sobre a quantidade total de alunos que foram transferidos para a EJA a reportagem obteve como resposta:

“A Superintendência de Atenção Especializada, por meio da Gerência de Educação de Jovens e Adultos, informa que não se trata de transferências compulsórias. Esses casos correspondem a situações específicas de matrícula”.

Isso, somado a uma tabela que contém a quantidade de alunos presentes na EJA no primeiro e no segundo semestre.

Uma tabela apresenta o total de estudantes da EJA em dois semestres de 2023. Na linha “Total de estudantes”, o número para 2023/1 é 14.175 e, para 2023/2, é 9.285
Fonte: Secretaria de Estado da Educação (Seduc)

 

De acordo com a tabela, a diferença de um semestre para o outro é de 4.890 alunos a menos. Levando em consideração que a indagação inicial foi: “Quantos alunos foram transferidos compulsoriamente do ensino regular noturno para a EJA?”, a redação levanta hipóteses sobre o que essa resposta poderia de fato significar:

A imagem mostra um gráfico de pizza dividido em três partes.* A maior parte, em cinza, representa alunos com paradeiro desconhecido (12.874 – 71,6%).* Uma parte menor, em vermelho, representa os alunos que continuaram na EJA (4.890 – 27,1%).* Uma fatia bem pequena, em azul, representa os alunos que voltaram para o ensino médio regular (236 – 1,3%).
Fonte: Secretaria de Estado da Educação (Seduc) via Lei de Acesso à Informação (LAI)

 

Quando questionados sobre os regressantes, obteve-se que se tratavam de 236 estudantes, portanto os 4.890 alunos representam os que se formaram ao fim do semestre. Contudo, como é possível observar no gráfico, ainda restam 12.874 alunos com o paradeiro desconhecido, que nem voltaram para o ensino médio, nem permaneceram na EJA – Isso ao levar em consideração os dados do O Popular de que cerca de 18 mil alunos foram transferidos.

Gráfico de pizza dividido em duas partes. A maior fatia, em vermelho, representa 95,2% (4.654) dos alunos que se formaram. A menor fatia, em azul, representa 4,8% (236) dos alunos que voltaram para a escola. Cada fatia possui um rótulo com texto e porcentagem ao lado.
Fonte: Secretaria de Estado da Educação (Seduc) via Lei de Acesso à Informação (LAI)

 

Mas também, pode-se pensar que dentre os 4.890 estudantes, 236 voltaram para a escola e o restante se formou naquele semestre. Dessa forma, no entanto, seria necessário descartar os dados terceirizados via O Popular.

Essa diferença de informações fornecidas pela Seduc, tanto para O Popular quanto para a reportagem via LAI, é o que resulta no questionamento inicial. 

A transparência e a clareza são essenciais quando se trata da LAI

Pela incerteza da resposta, no dia 30 de Outubro – dois dias após o retorno – a reportagem entra com recurso, requisitando, mais uma vez, a quantidade de alunos que foram transferidos. Recurso esse que foi respondido após mais 13 dias, constando:

“Ressaltamos que as mesmas perguntas já foram respondidas nas manifestações nº 2025.1015.184517-53 e nº 2025.1015.090020-55.  Destaca-se que a Secretaria de Estado da Educação cumpre integralmente a Sentença nº 5449322-48.2023.8.09.0051, de modo que novas matrículas na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA) para estudantes com idade inferior a 18 anos somente são autorizadas mediante parecer favorável do Conselho Estadual de Educação ou por decisão judicial específica. Ademais, esses estudantes não permanecem atualmente vinculados à Rede Estadual de Ensino, uma vez que a EJA se organiza em regime semestral de oferta, no qual cada semestre letivo corresponde a um ano/série do ensino regular. Assim, ao final do semestre, muitos desses estudantes concluíram a etapa cursada”.

Consultando o censo escolar do estado de Goiás, após comparar o número de matrículas na rede pública – da EJA e do ensino médio – entre 2022 e 2023, obtêm-se os seguintes números:

O gráfico mostra quatro barras comparando o número de matrículas no Ensino Médio e na EJA nos anos de 2022 e 2023. Em 2022, o Ensino Médio aparece com 216.915 matrículas e a EJA com 41.787. Em 2023, o Ensino Médio registra 192.889 matrículas, enquanto a EJA sobe para 60.559. As barras do Ensino Médio são azuis e as da EJA, vermelhas.
Fonte: Censo escolar de Goiás via Qedu

 

Em 2022 o Ensino Médio regular conta com 216.915 matrículas, mas em 2023 esse número diminui 11,07% – 24.026 matrículas a menos. Já quanto a EJA, a situação é invertida: há um aumento de 44,91% – 18.772 alunos a mais de um ano para o outro.

Número compatível ao fornecido pelo O Popular – mais tarde, ao entrar em contato com o Jornal foi confirmado que o número foi passado diretamente pela Seduc.

Em entrevista, a atual gerente da Educação para Jovens e Adultos, Istela Regina, fala sobre a quantidade de matrículas na EJA:

“A questão dessa redução [referindo-se ao período entre 2019 e 2022, que apresentou uma queda significativa de 36,81%], ela ocorre porque a gente corrige o fluxo. [...] E o nosso objetivo é isso mesmo, é sempre reduzir o número de matrículas de EJA. Porque, se a gente corrigir o fluxo, a gente não tem aumento de matrículas. Agora, se a gente não investir nessa modalidade, investir em formas de oferecer o término para esses estudantes, a tendência é só aumentar”.

A gerente também foi diretamente questionada sobre o fechamento das turmas noturnas e a transferência para a EJA:

– O que a senhora pode nos falar sobre as transferências compulsórias para a EJA dos alunos do ensino público após as turmas noturnas serem fechadas?

“Não houve fechamento no noturno dessas turmas. A gente não tinha o ensino regular noturno”.

 – Não tinha? – Questionou a entrevistadora.

“Assim, eram muito poucas, isso. Mas hoje a gente já tem. Agora, essa transferência deles [referindo-se aos 18 mil alunos] foi porque, por algum motivo, eles precisavam estudar e entraram com o processo do Conselho Estadual de Educação. Aí, antes, aceitava-se o aluno na rede, quando ele abria o processo, pedindo autorização do conselho”.

Seis anos antes a situação não era diferente

Essa forma de lidar com as turmas noturnas não é novidade. O Programa de Fortalecimento do Ensino Noturno (Profen) foi criado pela Seduc, em 2017, ao observar uma alta taxa de evasão, fluxo negativo e baixo nível de aprendizado. O objetivo era reverter essas perspectivas, dessa forma, criou-se o “Novo Ensino Médio Noturno” – englobando tanto o ensino médio quanto a 3ª etapa da EJA –, que consistia basicamente no Ensino Técnico e Profissionalizante no período noturno.

Os estudantes do “Novo Ensino Médio Noturno” passavam a ser matriculados na EJA de forma que, os alunos menores de idade deveriam cumprir a carga horária de seis semestres (três anos), e os alunos maiores de idade cumpririam apenas três semestres (um ano e meio). 

“Os estudantes, ao final de 2018, terão o certificado e poderão escolher um preparatório para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ou um curso técnico/profissionalizante, ambos oferecidos pela rede”, explicou a Secretaria da Educação de Goiás ainda em 2018

O programa, no entanto, foi encerrado em 2019 – logo após reduzir um ano no fluxo de formação de 17 mil alunos. Desses, 244 obtiveram o Certificado de Conclusão de Ensino Médio com apenas 16 anos, segundo dados divulgados pelo Jornal Somos. Cenário semelhante ao vivido em 2023.

Maria Margarida Machado, que atuou como coordenadora pedagógica do Departamento de Educação de Jovens e Adultos, discute que a precarização do ensino noturno na rede pública existe desde a criação do Novo Ensino Médio.

“Aquele momento ali já era uma tentativa de dizer assim: Não, pera aí, vamos dar a alguma alternativa com esse ensino noturno para que ele não passe pelo Novo Ensino Médio, não tem a mesma característica”. Ela afirma que a transferência de alunos para a Educação de Jovens e Adultos foi uma forma de mascarar a falta de preparo para implementar o Novo Ensino Médio no período noturno. Machado denuncia que, em média, 8 mil alunos com menos de 18 anos foram afetados por essa medida, descaracterizando, assim, a modalidade.

Ela explica que a real finalidade da EJA é atender a classe trabalhadora “mais adulta” que não teve a oportunidade de concluir o ensino básico. Segundo ela, existem jovens que não atingiram a maioridade estudando por esse sistema, porém, esse não é o cenário ideal para formação desses adolescentes.

Machado relaciona a queda de desempenho – especificamente do turno noturno em geral – com o fechamento dessas turmas e a consequente transferência dos alunos para a EJA: “Isso tem sido feito de forma sistemática, principalmente porque há, na gestão municipal e estaduais, um interesse de transferir alunos que têm dificuldades de aprendizagem, comportamento e dentro outros fatores para transferência”.

A professora Lilian de Jesus também comenta sobre o assunto: “Pegam aquele aluno que não trará bons resultados no ensino regular, que realiza a prova do Ideb, e o transferem para um lugar onde ele não será provado”. Nesse caso, cabe frisar que os alunos da EJA não passam por provas como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), que influenciam na nota e na reputação do ensino do estado e da instituição. Ela continua: “O estado de Goiás viu esse aluno que dava problemas e poderia atrapalhar suas notas externas e encaminhou para a EJA”.

“Esses índices são uma consequência (do aprendizado)” diz professora da rede pública.

O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) é um indicador que avalia a qualidade da educação no país. Em 2024 – referente ao ciclo de 2023 – o estado de Goiás obteve nota 4,8 no ensino da rede estadual, destacando-se nacionalmente. O cálculo do índice é feito a partir dos resultados da prova do Saeb, em que os alunos respondem questões de Língua Portuguesa e Matemática. 

A reportagem conversou com ex-alunos da rede pública a respeito do sistema da prova. Sobre o tratamento de alunos que apresentavam bom desempenho nos simulados preparatórios para o Saeb, os entrevistados mencionaram um sistema de recompensas baseado no acréscimo de nota no boletim escolar e outras premiações – como carteiras de motorista, bicicletas, fone de ouvido e tablets. Além disso, também foi relatado por eles que as instituições de ensino priorizavam o Saeb em relação ao Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).

Quando questionados sobre a pressão no ambiente escolar em relação à avaliação do Saeb, Yago, de 18 anos – do Colégio Estadual Belmiro Soares –, disse que, por mais que a instituição fornecesse apostilas específicas, ele não se sentia pressionado. Danilo, de 19 anos – do Colégio Estadual Jardim Nova Era –, diz: “Tinha muita pressão da escola para fazer a prova [...] Tinham amigos meus que ficavam muito nervosos com essa prova, isso gerava ansiedade… preocupação… Realmente desfocava um pouco dos estudos da escola mesmo”. Já outro aluno – Mário, de 18 anos –, da escola do Cabo PM Edimilson de Sousa Lemes, declarou que havia muita cobrança, especialmente nos meses antecedentes à avaliação.: “Era pressão tanto para os alunos, quanto para os professores, que sofriam bastante com isso também”.

A reportagem tentou entrar em contato com o Colégio Estadual da Polícia Militar de Goiás Ayrton Senna por meio de ligação telefônica para verificar as informações relatadas, porém não obteve nenhuma resposta por parte do mesmo.

Professora e coordenadora: os dois lados da moeda

Buscando entender a declaração do estudante a respeito da pressão sobre os professores, a redação conversou com uma professora  que leciona há vinte anos na rede pública e atua como coordenadora pedagógica há dez anos. A fonte, que preferiu não se identificar, afirma: “Hoje, trabalhar no Estado de Goiás está sendo muito difícil, não está sendo fácil, é quase um ambiente doentio”. 

Ela relata que existe muita pressão para criar ações para melhorar os resultados nas provas do Saeb. Por atuar nas duas funções, reconhece: “Nós coordenadores, infelizmente, reproduzimos um pouco dessa pressão. Porque a gente é cobrado, a gente tem que cobrar também dos professores”. Segundo a professora, essa imposição vem “de cima” – principalmente do governador e da Secretaria da Educação –, acontece como uma cadeia abrangendo todos os envolvidos e se tornando um efeito cascata. 

Como coordenadora, equipara estar na escola, atualmente, com estar em uma empresa: “Os professores precisam lidar com muitas plataformas de trabalhos. Nós, coordenadores, consequentemente, precisamos gerir essas plataformas e as planilhas com os resultados, com os percentuais das escolas, a todo momento”.

“Só nós, que estamos no chão da escola, sabemos o preço que estamos pagando para esta educação estar em primeiro lugar.” Diz em referência à colocação do estado de Goiás como destaque nacional na educação, mas continua: “Esses índices são uma consequência (do aprendizado). [...] Se a gente focar somente nos índices, acho que a escola perde o sentido”.

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