Um grito que ecoa: Mulheres Negras goianas voltam as ruas, após 10 anos, por reparação e bem viver
Com a meta de 1 milhão de participantes, a 2ª Marcha resgata a ancestralidade da luta e leva o ativismo de mulheres negras para uma dimensão global

Mulheres Negras goianas na Marcha de Brasília 2025; Foto: Ana Paula Penha
A Marcha Nacional das Mulheres Negras celebra, em 2025, dez anos da sua primeira edição em Brasília. Para marcar a data e reforçar o movimento, a organização convoca a 2ª Marcha por Reparação e Bem Viver para o dia 25 de novembro. O objetivo é reunir 1 milhão de Mulheres Negras nas ruas da capital federal para lutar por justiça e equidade.
A 2ª Marcha é convocada sob o lema "Por Reparação e Bem Viver", que foca em uma agenda que vai além do protesto. O movimento exige políticas públicas efetivas que revertam o impacto histórico do racismo estrutural, abrangendo justiça econômica, educacional e territorial. O conceito de Bem Viver, por sua vez, pede por saúde integral, segurança e dignidade para as mulheres negras. Para atingir a meta de 1 milhão, a mobilização é bastante ampla e conta com a articulação de diversos perfis como: mães, filhas, estudantes e trabalhadoras.
Para a professora e pesquisadora Lorena Francisco de Souza, docente do Instituto de Estudos Socioambientais (IESA) na Universidade Federal de Goiás (UFG), doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP), com ênfase em ensino de Geografia e Interseccionalidades Relacionando Gênero e Relações Raciais, afirma que a Marcha é um marco para à luta das mulheres negras no Brasil, que se mostra como um local para evidenciar as reivindicações feitas, o que dá ênfase ao tema da marcha de 2025 "Por Reparação e Bem Viver". “Eu entendo que a marcha é um momento de mobilização e visibilização das lutas das mulheres negras que já tem acontecido há bastante tempo, ela é esse marco. Acho que toda manifestação social que busca reivindicação de direitos, que busca equiparação da injustiça social, são válidos. A marcha entra exatamente nesse escopo, de trazer visibilidade à luta das mulheres negras e dos movimentos sociais negros organizados já ao longo da história do Brasil. E, além disso, ela também fortalece essa ideia de entendermos as mulheres negras enquanto um grupo social, que tem trajetórias, que têm identidades, que tem subjetividades, particularidades, mas que se constroem enquanto um grupo social, que tem direitos, que precisam ter políticas públicas específicas, que precisa ter um olhar específico e mais cuidadoso por parte do Estado”.
Organização da Marcha no estado de Goiás
A organização da Marcha acontece a partir dos Grupos de Trabalho (GTs) que são subgrupos organizacionais, cada um responsável por uma área específica e de atuação dos Comitês. Na organização de Goiás há cerca de 8 GTs, sendo eles: GT1- Bem Viver e Direito Afro-brasileiro, GT2 - Antirracismo e Educacional, GT3 - Justiça Ambiental no Cerrado, GT4 - Comunicação, GT5 - Participação Política, GT6 - Saberes Ancestrais, GT7 - Autocuidado e Saúde das Mulheres Negras e GT8 - Cultura das Mulheres Negras. Suas ações são estruturadas de forma articulada em torno de um objetivo comum: a luta pela dignidade da mulher negra. A atuação de Comitês Impulsores em cidades como Goiânia, Anápolis, Iporá, Cavalcante, Terezina, Monte Alegre, Jataí, Rio Verde, Mineiros, Itumbiara, Aparecida de Goiânia e Senador Canedo. Contam com o apoio institucional do IFG e do Ministério das Mulheres, reforçando o protagonismo e a força coletiva entre mulheres quilombolas, urbanas e acadêmicas.
O GT de Comunicação é importante para romper essas barreiras e espalhar a pauta para diferentes realidades. O objetivo é levar a marcha para todo o território goiano com mobilização online, pelas redes sociais, e offline, com panfletagem, carros de som, materiais informativos e principalmente por meio do sussurro, da voz e do grito. Para Manuela Augusta, jovem de 27 anos, integrante do GT de Comunicação da Marcha, cada conversa se transforma em uma forma de resistência e divulgação da luta. Assim, o movimento alcança não apenas mulheres negras, mas também a população em geral, chegando a comunidades marcadas pela pobreza e pelo analfabetismo.
A circulação de informação nesses lugares marginalizados e esquecidos depende do esforço coletivo dessas ativistas que se doam ao trabalho voluntário. Essa atividade se entrelaça com o cotidiano dessas mulheres que se dispõem a contribuir com dinheiro, tempo e materiais para concretizar os objetivos dos eventos e ações de comunicação nesses territórios. Apesar dos poucos recursos e da dura realidade, elas não se deixam abater pelos desafios.
“Para produzirmos peças de comunicação, materiais impressos, kits e presentes, contamos com alguns apoios de pessoas e instituições parceiras, como o Fundo Baobá, que enviou recursos há cerca de quatro meses. Nossa contribuição também não é apenas com serviços, mas, às vezes, com dinheiro. Não há um repasse direto de recursos. Podemos afirmar que a marcha tem uma equipe em Goiás, em Goiânia, trabalhando e recebendo? Não. Os equipamentos que usamos aqui são pagos por nós. Para chegar até o local, transporte, Uber e tudo mais, também sai do nosso bolso. Para produzir este evento, trabalhamos nos intervalos do expediente, na hora do almoço, à noite, de madrugada e nos fins de semana. É isso, a vida de uma pessoa voluntária é assim”, afirmou Manoela durante o Encontro Outubro Rosa- Vida das Mulheres Negras Importam
O alvo: diferentes realidades
Segundo o Censo 2022 do IBGE, Goiás tem mais de 7 milhões de habitantes, e mais da metade se autodeclara negra. Dentro desse recorte, mais de 300 mil pessoas ainda vivem em situação de analfabetismo, uma realidade que denuncia as desigualdades no trabalho, na educação e no acesso aos direitos básicos. Quando a Marcha leva sua narrativa para além dos próprios muros, alcança justamente quem sente esse vazio no cotidiano, como mulheres que enfrentam longas rotinas, jovens que são diariamente vítimas de barreiras enraizadas, mulheres que vivem em comunidades invisibilizadas.
A pesquisadora Lorena Francisco reforça que, apesar das singularidades, existe uma experiência comum que une essas mulheres.
“Nós somos indivíduos dotados de particularidades, cada uma tem uma trajetória diferente de se posicionar no mundo, tem uma leitura de um mundo diferente, mas quando estamos em grupo, consegue-se perceber muitas semelhanças do ponto de vista daquilo que nós compreendemos como aquilo que nos atinge enquanto grupo, que são as condições de vida, a dificuldade de acessar serviços, a falta de apoio, de políticas públicas que possam melhorar a vida dessas mulheres. E estamos falando que tudo isso precisa haver uma leitura interseccionada, porque nós somos coletividade, mas nós temos cruzamentos de opressões que nos constroem enquanto sujeitas”.

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Panorama do Censo 2022
Os dados populacionais ajudam a entender a distância entre quem apoia a Marcha e quem, de fato, vai ocupar as ruas. Em Goiás, essa desigualdade aparece com nitidez quando se observa o recorte racial e de gênero. A partir do panorama de equidade, a população preta compõe cerca de 50,01% da população de Goiás, que equivale a 3.022.161 pessoas. Dentro desse número 1.498.685 são mulheres, entretanto há uma expectativa de 5 mil mulheres irem a marcha, com possibilidade do número ser um pouco maior. Nessa lógica, ao comparar o número de mulheres negras que irão participar da marcha com o número de mulheres negras presentes no estado, percebe-se uma grande diferença.

Fonte: Senado Federal. Panorama de Equidade 2010
A experiência de Goiás é marcada por um conflito que surge das próprias ideias e crenças da região. A cultura local é bastante conservadora, o que torna difícil para as pessoas se organizarem e se mobilizarem para Brasília, mesmo com a proximidade. A ativista e cineasta Marta Cezaria de Oliveira, de 69 anos, mestra em educação e em ciência pela Universidade Federal de Goiás, expõe a realidade de Goiás, “O nosso Estado é um Estado muito machista. Misógino. Ele é conservador. É do agro. E a gente vai lutar contra isso”.
Segundo Lorena, essa pouca aderência vem de observações maiores, sobre como a forma que Goiás lida com movimentos sociais e os fatores que levaram a isso.
“Tudo demorou a chegar aqui, como o próprio Milton Santos diz, num livro [Por uma nova Geografia] que ele fala sobre quando ele vai fazer uma leitura espacial no território brasileiro, que tem as zonas luminosas e as zonas opacas. E esse sertão, essa parte do território que foi ocupada posteriormente, acabou sendo de fato considerada menos importante do que aquelas que foram as pioneiras, aquelas que foram primeiramente invadidas pelos portugueses e dominadas por eles. Então, houve uma entrada um pouco tardia para o restante desse território brasileiro, nós estamos, de acordo com Milton Santos, numa zona opaca. E aí eu acho que cabe a gente pensar também nessa lentidão, nessa opacidade, quando a gente fala de movimento social”.
Manuela Augusta complementa que Goiás pode se mobilizar mais por ser um estado mais perto e que tem pouco tempo de estrada “O tempo é uma grande questão. Imagina que tem muitas pessoas que trabalham sem ser de forma autônoma, ou que são autônomas, mas não podem parar, porque dois dias sem trabalhar é muito dinheiro, é complicado. Então, a gente vem lidando com tudo isso. Então, hoje já tem cartas para pessoas que queiram levar para a empresa para pedir liberação”.
A comunicadora expressa satisfação com o estado de Goiás. Apesar de reconhecer uma menor aderência quando comparada à quantidade total de mulheres que residem no estado e o número que efetivamente irá para a marcha, ela destaca que, dentro da região Centro-Oeste, Goiás é o estado mais mobilizado.
Com entusiasmo ela fala sobre o número de pessoas que o movimento alcançou até o momento, e compartilha suas expectativas sobre o evento em Brasília, “Na minha visão, a marcha lá em Brasília é um desfecho e um recomeço. Desfecho de um trabalho que vem sendo feito há mais de um ano, de mobilização da marcha. Então, eu vejo que ela é esse todo, não só o momento de Brasília, e aí a gente vai impactar muito mais do que um milhão de pessoas. E o recomeço, porque o pós-marcha existe o legado, existe tudo que a gente quer que seja construído. Que mude, que melhore e que seja colocado em prática ali após a marcha”.
A mobilização de mulheres negras em Goiás enfrenta um cenário de complexos desafios estruturais e culturais, exigindo estratégias de ação e comunicação focadas no âmbito local. O estado é marcado pela persistência do racismo e do sexismo estrutural, que impõem muitas barreiras no acesso à educação, trabalho e serviços básicos para mulheres negras. Por isso, a pauta por Reparação e Bem Viver é considerada urgente, especialmente no combate à violência e na segurança pública. Manuela adiciona: “Para além dos projetos políticos, eu fico pensando nessa questão do próprio slogan da marcha. Quando eu penso em reparação e bem viver enquanto processo estrutural, isso é muito amplo, mas o que é reparação e bem viver pra mim? Eu sei que a pauta é coletiva, e o que vai acontecer coletivamente é o mais importante. Entretanto, existem as expectativas individuais e eu penso em não sentir medo. Não sei se o Estado dá conta disso, de me ajudar com isso de fato. A gente continua sentindo medo, os homens negros continuam morrendo, ainda há muita violência obstétrica”.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2023, os casos de racismo no Brasil aumentaram 67% entre 2021 e 2022.

Manuela explica que além da violência direta, há uma invisibilidade persistente sobre as mulheres negras e suas pautas. Ao longo da luta, a utilização de frases como “não precisa mais dessa luta”, “o racismo acabou”, “todos somos iguais” e “esses movimentos são de esquerda”, continuam sendo usadas para deslegitimar o movimento. Apesar disso, a Marcha das Mulheres Negras busca uma transformação coletiva, que beneficia toda a sociedade, especialmente as mulheres negras. Ela também esclarece que nenhuma mulher negra deixa de usufruir das conquistas obtidas pela resistência dessas militantes, seja no enfrentamento da violência policial e obstétrica, na redução da evasão escolar e universitária, na luta pela equidade salarial ou no combate ao feminicídio.
Márcia Fabiana, jornalista de 57 anos e membro do GT de comunicação, complementa que os diversos projetos de lei que surgiram e estão funcionando são fruto dos movimentos negros, e beneficiam toda a população. Segundo ela, quando a população preta melhora e evolui, o Brasil todo se movimenta, porque mais da metade da população brasileira é da classe trabalhadora e negra, mas boa parte está no subemprego, não tem acesso a qualidade de vida, saúde e educação. “Tem muita gente lutando pelo básico. Viver, comer, viver e comer”.

História e Luta em Goiás

Mulheres Negras se encontram com Dilma Rousseff e reafirmam a luta contra o Racismo, Machismo e pelo Bem viver;
Foto: Acervo do Grupo de Mulheres Negras Dandara no Cerrado
A organização em Goiás, segundo Marta, começou de forma informal e familiar, com reuniões entre suas irmãs e amigos, nos anos 90. O tema inicial dos encontros era a agricultura orgânica. “Achamos importante criar, em 1999, um grupo de agricultura orgânica. E nós, enquanto mulheres, já vínhamos nos reunindo desde 1991, dizendo: Mulheres Negras e Construindo a Consciência Cidadã. Aí já não era só a família, a gente já foi juntando outras mulheres no grupo, até que chegou em 1998 e falamos: vamos fazer um encontro? Aí nós fizemos um encontro, o Negra que Te Quero Negra, um encontro estadual para todas as mulheres, com quase cem mulheres negras, era pra cem, mas choveu tanto aquele dia”, explica Marta.
Após alguns anos, em 1996, Marta participou do encontro nacional em Salvador, que havia organização feminina negra em Goiás, e conquistou uma vaga para um encontro internacional. “Em 96, eu fui no encontro em Salvador, e aí disseram que Goiás estava fora do encontro que ia ter na América Latina da rede, porque Goiás não tinha grupo de mulheres. Aí eu provei por A mais B que existia grupo de mulheres em Goiás e que nós estávamos mais organizadas que as outras.”, relembra. O movimento se oficializou em 20 de novembro de 1996, com um grande encontro na Praça dos Buritis, convocando outras mulheres negras a participarem. Porém o grupo só foi registrado em 1999, com o nome de Malunga (companheira), com seu foco inicial na saúde da população negra. Mais tarde, se dividiu devido a divergências de foco, pois parte queria continuar apenas com saúde, e outra queria abranger combate à violência, empoderamento e geração de renda/trabalho. Foi assim que nasceu a Dandara no Cerrado - registrada em 2000 - que prioriza a educação como a principal via de empoderamento e saída da violência. Marta é categórica ao explicar a escolha. “A nossa bandeira principal é: não existe combate à violência sem empoderamento, e o empoderamento nosso era o estudo.”
Mas mesmo após Goiás mostrar sua força e organização nos movimentos, ainda havia muito preconceito e barreiras institucionais. Apesar de serem grupos devidamente registrados, Marta e as demais integrantes goianas tinham o desafio de serem ouvidas e levadas a sério. Ela chegou a adotar uma estratégia pessoal para conseguir acessar os prédios de poder. “Para passar naquelas merdas daquela portaria lá, para não ser incomodada, eu comprei quatro terninhos.”, relatou. A afirmação de si era a resistência contra o apagamento e a discriminação. “Eu sou bonita. Não é a roupa que me faz mais bonita. Eu sou. Eu tenho que afirmar o que eu sou, e não os outros.”
De acordo com Marta Cezaria, o movimento de mulheres negras em Goiás é um processo de articulação contínua e resistência, marcado por desafios sociais e a priorização da educação e do empoderamento econômico. E através do ponto de vista histórico e como a luta está em local de resistência, Lorena Francisco explica essa questão por meio de uma perspectiva histórica. “A luta das mulheres negras no Brasil é histórica, ela vem de séculos, e às vezes a gente não consegue dar visibilidade para isso, exatamente por conta dessa herança escravista colonial, que reelegeu a população negra a uma marginalização social, a um lugar pré-determinado, a um lugar de inferiorização e de desigualdade. Então, sabemos que historicamente sempre estivemos em desvantagem, do ponto de vista social, econômico, político, cultural. E as mulheres negras, quando se propõem a se organizar, não somente do ponto de vista efetivo ou concreto de estar num movimento social, também representam luta, estão em movimentação e de certo modo são resistência e apresentam ações de resistência…”
Mobilização local para a Marcha 2015

Mulheres Negras em marcha contra o Racismo, Machismo e pelo Bem Viver em Brasília no ano de 2015;
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
A ideia da Marcha foi trazida para Goiás em 2011, após Janira Sodré - doutoranda em História pela Universidade de Brasília, mestra em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, especialista em Educação pela PUC São Paulo e ativista pelo bem- viver e Marta participarem de um encontro em Salvador, o Encontro Ibero-Americano do Ano dos Afrodescendentes. “Então, ali a gente começou todo esse processo de articulação de uma marcha para 2015. Não era o formato que a gente sonhava, mas foi o que foi possível fazer”, lembrou Marta.
O Comitê foi articulado com base nos três grupos precursores: Dandara, Malunga e Lélia Gonzalez, além da participação de núcleos de universidades goianas e sindicatos. Marta conta.“Chegando em Goiás, a gente articulou esse comitê. Fomos para a rua, fizemos 25 de julho na rua lançando a marcha, fizemos panfleto, depois fizemos camiseta, articulamos e fomos para Brasília. Não foi fácil, mas foi.”
A Marcha de 2015 solidificou a articulação local e lançou as bases para um movimento maior. O legado mais importante desse processo foi a continuidade e o crescimento do movimento, que se reconfigurou para ganhar mais força e reconhecimento.
As articulações posteriores à Marcha se expandiram e acolheram a juventude. Marta Cezaria observa que essa expansão resultou em uma descentralização e um aumento de atividades, o que fez com que o grupo ganhasse cada vez mais força. Ela ilustra o ritmo atual da organização. “Essa marcha agora, nós temos um comitê bem mais amplo. Então, uma diferença de dez anos é muito importante, porque, enquanto lá (em 2015) eram três grupos, aqui agora somos quantas? Eu falo isso para as meninas. E o tanto de meninas novatas que entrou no processo? Isso, para mim, é o melhor de tudo. Porque o grupo não morre. Você pode até, às vezes, não alcançar todos os grupos, mas a articulação, ela tem que gerar frutos. E eu acredito que o movimento negro de Goiás tem gerado muitos frutos. Claro, tem muitas dificuldades. Têm dificuldades financeiras de relacionamento e outras. Mas isso é normal dentro de qualquer instituição.”
Encontro de gerações

Encontro de gerações na Marcha das Mulheres Negras em Brasília; Foto: Iarle Januário
A preparação para a Marcha das Mulheres Negras 2025 em Goiás é marcada pelo encontro de forças entre diferentes gerações. De um lado, temos Arilene Martins, a educadora popular que construiu sua militância desde a juventude, testemunhou a primeira Marcha e hoje integra o Comitê Impulsor de Goiás, lutando pela valorização do movimento. De outro, Hingred Guimarães, a graduanda que despertou sua consciência política na universidade e encontra agora, através da arte e da organização, o convite para sua primeira Marcha, garantindo o futuro e a continuidade dessa luta histórica.
Arilene Martins
Arilene em Marcha por Reparação e Bem Viver; Foto Mayara Varalho
Arilene Martins de Souza, 56, é uma mulher negra retinta, com os cabelos curtos e crespos. É quilombola, mas atualmente mora na capital Goiânia. Mãe e educadora popular, ela é formada em Filosofia com pós-graduação em Educação Ambiental pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-Goiás).
Força Familiar
A força e a resiliência de Arilene foram moldadas dentro de sua própria casa, num ambiente familiar cheio de referências negras. Ela não precisou buscar essa representatividade fora, pois cresceu cercada por mulheres fortes e inspiradoras, que representam uma linhagem poderosa. Desde cedo, ela absorveu a história e a luta do seu povo, aprendendo com o exemplo dessas mulheres que fizeram parte de sua vida.
Embora tenha visto homens e mulheres negros muito fortes na sua comunidade, foi especialmente a presença feminina que a tocou e motivou. A força veio de uma herança familiar rica, uma conexão que ela carrega com orgulho e que continua a inspirar sua jornada. Ela explica de onde tirou sua força e motivação. "Minha avó é a que mais representa o topo dessa força de resistência de mulher preta, logo em seguida vêm minha mãe e tias que foram mulheres fortes e potentes. É isso que fez eu ter a referência de mulher preta que sou hoje", relata.
Crescendo com grandes aprendizados, ela compreendeu a ancestralidade do povo negro, uma trajetoria marcada por luta, força e coragem inabaláveis que perduram até hoje. Essa resistência se manifesta nos diversos territórios, como nos quilombos e nas periferias, onde reside a maior parte da população negra. De acordo com o IBGE no Censo Demográfico de 2022, as periferias são ocupadas por 72,9% de pessoas negras (pretos e pardos).
Aprendendo com a Militância
Ainda muito jovem, no interior de Goiás, Arilene desenvolveu sua base política e social. “Eu tive toda uma formação na Pastoral da Juventude, desde de os meus 12 anos praticamente, tive uma parte da formação política”, afirma. No decorrer do tempo, surgiu a oportunidade de se mudar para Goiânia em busca de uma melhoria de vida. Com a ajuda de amigos e parentes, ela se migrou para a capital em um movimento de busca de sobrevivência, pela educação e organização popular - grupos que reivindicam melhorias (movimentos sociais) que esteve e continuam em sua trajetória.
Em Goiânia, ingressou na PUC-Goiás. no ambiente universitário sua consciência política e representativa melhorou. Foi ali que criou uma concepção de ser uma mulher negra e de quais eram seus lugares de luta na sociedade. Viver e lutar como uma mulher negra em Goiás, para ela, é estar em constante processo de afirmação da identidade e de construção de espaços de poder em uma região historicamente marcada por desafios. Em um projeto de extensão da universidade ProAfro (Programa de Estudos e Extensão Afro-Brasileira), que a conectou com o movimento negro, e ajudou a entrar no momento de identificação racial.
Foi no ambiente de ativismo, impulsionada pelo projeto ProAfro e pelas articulações locais, que Arilene tomou conhecimento da Marcha das Mulheres Negras de 2015. Para ela, participar da marcha não foi apenas um ato isolado, mas um passo importante na sua trajetória. "Fui na primeira marcha como convidada mesmo, como participante desse momento, mas já entendendo a importância de estar nesse espaço de luta", explica, reforçando a consciência de sua presença.
Logo após o evento, ela começou a se envolver mais com o letramento racial e a se dedicar ao movimento negro. Ela entrou no Coletivo Pretas de Angola por convite de sua amiga, Janira Sodré, e continua fazendo parte até hoje. Participar da primeira marcha das mulheres negras foi uma experiência que a fortaleceu como mulher negra e ajudou a perceber a dimensão coletiva da luta. "Mas também me fez enxergar quantas mulheres negras estão no mesmo caminho, na mesma luta que eu. Me fortalece nesse sentido de entender que somos muitas e que precisamos continuar unidas para que a gente consiga mover essa estrutura da sociedade."
Arilene percebeu que a luta pela autonomia das mulheres negras precisava de uma organização baseada na economia, uma prática que faz parte de suas raízes há muito tempo. Por isso, ela participou dos primeiros movimentos de Economia Solidária em Goiânia e em Goiás.
Da participação à Organização da Marcha 2025
Hoje, essa inspiração coletiva e com todas as experiências que criou no decorrer dos anos, se manifesta em sua atuação como educadora popular e líder de mobilizações. Participando ativamente da organização da marcha das mulheres negras de 2025 e ajudando articular os comitês impulsores de Goiás. Seu envolvimento é motivado por um desejo profundo de mudança: “O que me faz estar no movimento e inclusive estar no comitê impulsor é esse compromisso com a transformação social. Tivemos várias conquistas, mas ainda tem muita coisa para conquistar, a luta ainda continua, estamos nesse segundo momento por reparação e bem viver. Não é possível um bem viver para as mulheres pretas se a gente não imprimir na sociedade brasileira essa necessidade de reparação dos nossos direitos, tanto econômicos, quanto sociais, de estar no lugar de poder, de decisões. Então, eu acho que é isso que me faz estar no comitê impulsor e me leva para a segunda marcha com todo esse desejo."
O trabalho de Arilene é levar à diversos territórios como: Quilombos, Periferias, Assentamentos e Acampamentos do Movimento Sem Terra (MST), onde motiva as mulheres a participar da Marcha e entender melhor o seu poder enquanto mulher. Ela dedica seu tempo a conduzir rodas de conversas e oficinas com mulheres e juventude, compartilhando sobre a ancestralidade e os desafios da sociedade negra. Já realizou diversas palestras em diversas regiões do estado, ajudando a espalhar ideias de conscientização e resistência.
Para a educadora, o ativismo vai além das fronteiras locais, pois ela acredita que a luta por direitos é uma missão que deve acontecer em todo o mundo. Seu desejo de promover mudanças sociais, reparações e uma vida mais justa se estende além do estado de Goiás, encontrando na Marcha das Mulheres Negras o espaço perfeito para isso.
Ela fala sobre como o movimento vem crescendo e explica por que dedica tanto tempo à organização da segunda edição:
"O legado que a Marcha tem conquistado é esse de dar as mãos para o mundo inteiro. A Marcha realmente não é só do Brasil, a Marcha virou internacional. Esse passo de internacionalizar a Marcha para a gente é um momento muito importante para que possamos contar com todas nós e nos enxergar enquanto mundo, não só Brasil, mas que tem muitas mulheres que estão no mesmo caminho de garantia de direitos."
Em cada roda de conversa e em cada lugar que visita, não só compartilha sua sabedoria ancestral, mas também reafirma seu compromisso de transformar a sociedade. Ela quer garantir que a força, a coragem e a dignidade das mulheres negras sejam reconhecidas de verdade, desde os quilombos até os palcos internacionais.
Hingred Guimarães

Encontro de pré-estreia do seu primeiro trabalho dirigido- Videoclipe: Feridaz; Foto: Kadu Oliveira
Hingred Guimarães, é uma jovem de 20 anos, negra de pele clara, com os cabelos cacheados, graduanda em Cinema e Audiovisual na Universidade Estadual de Goiás (UEG), que representa como a nova geração de mulheres negras no estado de Goiás, encontram na Universidade o despertar da consciência crítica e seu papel na sociedade.
Educação um Ato de Resistência
Desde de cedo, Hingred se interessou pela luta e militância, mas foi na Universidade que encontrou um caminho estruturado. O ambiente acadêmico não só abriu seus horizontes, mas também impulsionou a se descobrir plenamente como mulher negra e a entender os caminhos que deveria seguir no ativismo. “ Eu me senti muito acolhida, e foi lá que eu me descobri enquanto uma pessoa negra, porque antes eu não tinha conhecimento da grandiosidade que era, das políticas e da militância mais a fundo.”
Essa compreensão se transformou em um pilar de apoio. Agora ela é a pessoa que orienta e acolhe as novas alunas que ingressam no ensino superior, compartilhando conhecimento que adquiriu para facilitar a jornada de autodescoberta e engajamento das recém-chegadas.
Historicamente na sociedade brasileira, os jovens negros foram afastados dos espaços de conhecimento. Agora, ao entrarem na universidade, eles estão se preparando para ocupar posições de liderança das quais foram constantemente afastados. É nessas instituições que ocorrem as mudanças mais significativas na vida desses jovens, especialmente no momento de reconhecer suas próprias origens.
Para Hingred e sua geração, a luta pela educação não é só a forma de melhorar de vida, mas também uma questão de engajamento e defesa de seus direitos. Uma das pautas de reivindicação das mulheres negras é uma educação libertadora para a juventude negra (Garantindo a aplicação efetiva do ensino da história e cultura afro-brasileira, africana e indígena em todas as etapas da educação básica) levando representatividade nas escolas.
Atualmente, a continuidade do movimento antirrascista e da Marcha das Mulheres Negras depende do acesso à educação de qualidade para a juventude negra. Mais do que a forma de melhorar de vida, estudar bem se torna um ato de resistência, ajudando a fortalecer a consciência racial e a identidade preta de forma firme e segura.
O caminho dela se cruzou com a Marcha de maneira espontânea e criativa, reforçando a importância das redes de mulheres negras. “Eu já tinha ouvido por alto, mas não tinha buscado saber a fundo o que era o movimento. Conheci a Marcha agora, através do projeto dos Diaspóricas, que são o pessoal do audiovisual, que faz um movimento incrível com musicistas negras, e eu fui convidada para participar da Marcha e já garanti minha vaga para participar da Marcha” Explica.
Atuando no projeto Diaspóricas, ela teve a honra de participar da equipe na última temporada, unindo arte, comunicação e luta. Foi por meio dessa rede que ela recebeu o convite para um encontro de organização da Marcha das Mulheres Negras. O interesse foi imediato: ela está profundamente motivada a participar, buscando estar "Agora, conhecendo mais a fundo, a vontade é de continuar, não sair mais do movimento e ajudar no que puder".
A participação na Marcha, marcada para 25 de novembro, é agora uma prioridade. Hingred vê no evento não apenas um ato, mas a reafirmação de um compromisso histórico que transcende as gerações.
O Legado Continua
A mobilização para o dia 25 de novembro de 2025 vai além dessa data específica. Celebrar os dez anos desde a primeira Marcha Nacional das Mulheres Negras mostra que a luta por Reparação e Bem Viver não é algo passageiro, mas um projeto que envolve várias gerações de ativistas. A intenção de reunir um milhão de pessoas nas ruas demonstra a necessidade urgente de combater o racismo e o sexismo estrutural que pautam a vida no país, e especialmente em Goiás.
As mulheres negras de Goiás, sejam elas veteranas na organização ou jovens ativistas, reafirmam com a força de seus Comitês Impulsores que a luta por direitos é antiga, coletiva e contínua. Como afirma a professora, filósofa e ativista Angela Davis: "Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela".
A Marcha é, portanto, a certeza de que a nova geração está preparada para dar seguimento ao legado. As mulheres negras jamais deixarão de marchar.